SEMENTES PARA CRESCER

Práticas parentais de reforço à auto-estima da criança


A importância da discussão em torno do tema auto-estima torna-se extremamente relevante, no sentido em que o grau de investimento, por parte duma criança, em explorar e enfrentar os desafios desenvolvimentais, depende da confiança em si e nas suas capacidades.


Num momento em que o Bullying e o consumo de substâncias psicoativas são temas recorrentes, verifica-se que a criança/adolescente com uma boa auto-estima encontra-se mais preparada para se defender e fazer-se respeitar, não permitindo que os outros abusem de si ou a influenciem negativamente. Para dotarmos as nossas crianças dessas ferramentas, o papel dos pais e de outros adultos de referência assume um papel preponderante.


Auto-estima
No desenvolvimento da criança, na aquisição de competências e nas conquistas daí resultantes, importa indagar sobre a construção e desenvolvimento da auto-estima, bem como o papel dos adultos nesse processo.


A imagem que temos de nós, ou seja, o modo como nos percepcionamos (auto-conceito), é construída desde uma fase muito precoce da nossa vida, provavelmente desde a gravidez, e encontra-se, de modo indelével, ligada à relação com os pais e/ou outras figuras de referência da nossa vida.

Visto a capacidade da criança em realizar um julgamento eficaz de si e das suas capacidades ser reduzida, depende das pessoas que lhe são significativas, que funcionam como "espelhos", aos olhos de quem se percepciona. Deste modo, os pais são, geralmente, os principais "espelhos" da criança, e têm um papel crucial no modo como se avalia e confia nas suas capacidades.

E é com base nessa imagem devolvida pelos pais que a criança constrói a sua auto-imagem e realiza um julgamento sobre si, que pode ser mais ou menos positivo. A esse julgamento, ou a essa avaliação que realizamos sobre o nosso auto-conceito, denominamos de auto-estima.


Papel Parental

Importa então reflectir sobre o que lhes estamos a transmitir. Porque se, predominantemente, a criança receber “ecos” positivos, a sua auto-estima tenderá a ser alta. No sentido inverso, se recebe com maior frequência feedback negativo, tenderá a possuir uma imagem negativa de si própria.


Cabe então aos adultos a tarefa de valorizar o que de bom a criança realiza, as suas qualidades e, mesmo nas actividades em que possuí maiores dificuldades, transmitir-lhes a esperança de serem bem sucedidas.


O elogio enquanto arma positiva

O elogio serve como uma poderosa ferramenta ao serviço dos pais, no que se refere à auto-estima dos seus filhos. Atribuído quando tenta realizar algo (elogiar o esforço, não apenas os sucessos), faz com que se sinta importante, valorizada, e capaz de empreender novas tentativas e conquistas. Além de permitir que acredite que é capaz de realizar algo que o adulto valoriza e respeita, este sentimento de confiança de ser bem sucedida é interiorizado e preservado no futuro.


Assim, mesmo quando o sucesso não é alcançado, o elogio pela tentativa, associado à esperança que o adulto lhe transmite que da próxima vez poderá ser bem sucedida, permite-lhe acreditar em si e nas suas capacidades, o que a ajuda a lidar com as frustrações de forma mais eficaz.



O poder das palavras

Para além do elogio, com grande frequência os pais são levados a sinalizar comportamentos ou acções que não consideram os mais adequados. Por vezes desprovidas de grande reflexão, as palavras utilizadas assumem um valor fundamental na mensagem que queremos transmitir, e no que queremos que a criança percepcione.


Torna-se então perigoso recorrer aos típicos rótulos e etiquetas que por vezes atribuímos às crianças. Como anteriormente referido, elas procuram nos adultos significativos espelhos que lhes ajudem a moldar a sua imagem. Essa imagem convém ser positiva e, quando não o for, deve transmitir a possibilidade de mudança para melhor.


Os rótulos não transmitem essa possibilidade. Ao invés, contribuem para que se percepcione e comporte de acordo com os “títulos” que os adultos lhes devolvem. Se, desde uma fase precoce da sua vida, começa a identificar-se com designações como “burra”, “preguiçosa”, “pastelona”, entre outras, com maior probabilidade crescerá a acreditar que o é.


A nível educativo, verifica-se a necessidade de ajudar a criança a compreender os comportamentos que não são os desejados pelos adultos, e aí torna-se importante recorrer a um uso eficaz das palavras. Para tal, as verbalizações dos adultos devem incidir sobre os comportamentos incorrectos da criança (Ex. “Esqueceste-te de arrumar o quarto”). Uma correcta sinalização do comportamento indesejado, permite à criança interiorizá-lo e, ao adulto, demonstrar o comportamento desejado, bem como transmitir que acreditamos na possibilidade de mudança positiva no futuro.

O oposto verifica-se quando, ao invés de demonstrar o comportamento desejado, atribuímos traços de personalidade (Ex.: “és sempre um desarrumado” ao invés de “tens de arrumar o quarto”). Deste modo, ao invés de se contribuir para uma efectiva melhoria comportamental por parte da criança, estamos a fornecer uma avaliação da sua identidade, de carácter permanente.


Ideias Positivas:

É necessário a criança acreditar na possibilidade de sucesso, e para tal precisa ser bem sucedido na realização de tarefas. Para tal, os pais devem procurar transmitir essa possibilidade de sucesso. Importa assim atribuir-lhe pequenas tarefas, que sejam adequadas à sua faixa etária, para ter verdadeiras hipóteses de ser bem sucedida. Nesse sentido, damos-lhe oportunidades de desenvolver-se, sem incorrer no erro de protecção em excesso, nem de a pressionar além das suas limitações naturais.

- Todavia, não cabe ao adulto procurar evitar exaustivamente que a criança se depare com sentimentos de frustração. Mais do que tal, a sua tarefa passa pelo ensinar que não é possível ser sempre bem sucedido. Quando existe uma boa identificação parental, a criança cresce tendo os pais como modelos a seguir. Porém, pode ser difícil para uma criança acreditar que poderá ser um dia como aquele ser perfeito que o pai e/ou a mãe aparenta ser. É muito salutar que os adultos também admitam quando cometem erros, e que o façam junto da criança. Reconhece assim que os adultos não são perfeitos, tal como ela não o é. Deste modo, os adultos podem ajudar a criança a aprender que errar é natural, todos o fazem, não apenas ela, e que existe sempre a possibilidade de, na próxima vez, procurar melhorar.


- Quando possível, permita que a criança tome as suas próprias decisões. Pode-se, por exemplo, pedir que opine sobre questões como onde ir passear, que actividade realizar, entre outras. Tal faz com que se sinta importante, valorizada e respeitada.

- Ouvir a criança. Mesmo nos momentos em que está apressado/a, é importante parar para ouvir e valorizar o que a criança nos transmite. Por vezes não é possível dar atenção imediata às suas questões. Nesses momentos, é preferível explicar que será melhor falar sobre o assunto mais tarde. Quando possível, volte a abordar novamente a questão junto dela.


– Dar valor às questões colocadas pela criança. Elas fazem perguntas de enorme significado moral, resta-nos estar atentos e, em conjunto, procurar aprofundá-las - não com a postura de sabedores da verdade, mas ouvindo o seu ponto de vista, expondo os nossos, explorando e descobrindo em conjunto. É neste ouvir e partilhar de argumentos com outras crianças e adultos que ela experiencia desequilíbrios cognitivos, que a levam a colocar em causa os seus conceitos e conduzem a uma nova reorganização dos mesmos. Este conflito (cognitivo) é fundamental para a reestruturação do raciocínio e para o desenvolvimento mental.

- Permitir a livre expressão dos seus sentimentos, mesmo os negativos. Por vezes, desvalorizam-se sentimentos muito fortes da criança, com expressões como "não se chora", ou "isso não é nada". Se ela sente, é porque tem razões para tal. É importante validar esses sentimentos e permitir-lhe que os partilhe com os adultos.

- É frequente esquecermo-nos de que já fomos crianças, e de que a sua forma de entender e percepcionar o mundo é muito diferente da nossa. Procure empatizar com ela, e perceber como esta se sente em determinado momento. Deste modo, ser-lhe-á mais fácil entender o seu ponto de vista e, assim, lidar com ela.

- Tal como os adultos, a criança também aprecia (e merece) que respeitem os seus espaços e limites. Expressões como "com licença" e "obrigado" podem contribuir para que se sinta confiante e respeitada.

- Partilhar com os filhos os seus gostos e os seus valores.


- Enquanto modelo para as crianças, transmita e seja entusiasta, positivo e alegre.


- Por vezes, o cansaço fruto dum dia de trabalho pode favorecer momentos em que se "descarrega" na criança de forma descontextualizada e injusta. É necessário avaliar o nosso estado e, quando necessário, recorrer ao parceiro para que lide com determinadas situações, resguardando o adulto mais cansado (e a criança).


- Esta é uma verdade que deve ser aplicada para todas as crianças, mas que torna-se mais relevante quando se trata de irmãos: o recorrer às comparações para repreender ou fazer a criança ver qual o comportamento desejável não é uma boa estratégia pedagógica. Não é positivo para nenhuma delas, e há uma delas que fica
prejudicada com a situação. Em comportamentos negativos, o ideal será comparar com outros momentos positivos (Ex. “Não devias ter batido no teu irmão. Lembras-te no outro dia quando vieste contar aos pais que o mano te estava a chatear?”).


- Uma grande parte do dia da criança é vivenciado longe dos pais, na escola, no jardim-de-infância ou creche. No fim do dia, é relevante que os pais demonstrem interesse e curiosidade pelas actividades dos seus filhos. Com frequência a criança ou não responde ou é vaga, mas o que conta é o interesse demonstrado pelos pais, o que
a permite percepcionar-se como importante para eles.
Desafio: experimentar perguntar à criança pelas coisas boas do seu dia, o que mais gostou, o que valorizou. De seguida, expressar igualmente o que mais gostou no seu próprio dia.

- Diga à sua criança o que a faz única e especial. Todos nós o somos, mas poucas vezes alguém nos diz.


- Por fim, uma última referência para o elogio: elogie-a com frequência, mas quando e onde o merecer. Os elogios são uma óptima ferramenta para a construção da auto-estima, mas só quando atribuídos pelo mérito, e de forma coerente. Mais do que o resultado, reforce o esforço da criança para ser bem sucedida.

Termina-se com uma proposta: uma vez por dia (no mínimo), elogiar uma acção ou qualidade positiva da criança, com naturalidade e no momento em que ela realiza o comportamento alvo do elogio.

Participação na Revista CEI - Cadernos de Educação de Infância, Agosto de 2010


Participação na Revista Pais & Filhos, Maio de 2010

http://www.paisefilhos.pt/index.php/familia/pais-a-m-menu-familia-58/2737-tver-ou-nao-tver-nao-e-a-questao


Como explicar a crise às crianças

Especialistas garantem que aos três anos as crianças já devem saber porque não podem ter brinquedos novos.

A crise alterou a vida de muitas crianças, mas os pais não sabem como falar dela. Pediatras aconselham a não esconder o problema. E sugerem a melhor forma de explicar aos mais novos o drama dos problemas financeiros quando eles fizerem certas perguntas.

Pai e mãe, porque é que não posso comprar o brinquedo?

"É essencial integrar as crianças nas poupanças em tempo de crise. Ou seja, fazer com que elas se sintam parte da resolução." O conselho é do pediatra Gomes Pedro. Não esconder das crianças os tempos difíceis de crise e envolvê- -las nas poupanças familiares é também a opinião do psicólogo Bruno Pereira Gomes. "Assim, elas sentem que estão a ajudar, vão sentir-se melhor, caso contrário poderiam até pensar que os problemas económicos da família são culpa delas", explica o especialista ao DN.

A psicóloga Sílvia de Jesus Coutinho defende que "convém passar a mensagem às crianças de que nem sempre vão poder comprar tudo o que querem". Adiantando que assim os mais pequenos se adaptam melhor às mudanças de circunstâncias e percebem que os pais não são nem devem ser super-heróis.

O que quer dizer isso da crise, podem explicar-me?

Conversar com as crianças não é fácil, mas Bruno Gomes sugere que os pais fujam aos discursos elaborados. O especialista diz que o melhor é um discurso simples que não assuste as crianças.

Também Sílvia Coutinho avisa que quando os filhos perguntam o que é a crise tudo deve ser explicado "numa linguagem próxima do nível de entendimento da criança". Além disso, acrescenta, não se deve "explicar coisas a mais". Basta responder às perguntas dos filhos de forma simples.

"Não é preciso forçar nada. Há que estar atento às perguntas que os filhos fazem e ir esclarecendo as dúvidas calmamente" diz Bruno Gomes, que acha ser "impossível as crianças não saberem o que se passa com a quantidade de notícias que há". Atendendo às informações, "elas, neste momento, têm medo da crise", diz.

Mas eu não sou novo de mais para saber essas coisas?

De acordo com Gomes Pedro, quando as crianças entram para a escola, "é importante que vão adaptando os conhecimentos". Mas Sílvia Coutinho considera que aos três anos as crianças começam a pedir brinquedos e é preciso dizer-lhes que não podem ter tudo. Por isso, essa pode ser uma boa idade para lhes explicar de forma simples o que é a crise.

Nestas idades, a crise pode ter um lado positivo, diz Gomes Pedro: "É nestas alturas que as crianças podem construir valores morais e aprender a partilhar." Isto é, ao compreenderem as dificuldades por que passa a família, ou outras pessoas, aprendem também elas a fazer frente aos problemas. Gomes Pedro sublinha, porém, que aos três ou quatro anos os miúdos "envolvem-se naturalmente nas fantasias".

Então e aquelas histórias todas de finais felizes não existem?

Apesar de a crise não ser uma situação agradável, Bruno Gomes defende a necessidade de as crianças imaginarem que podem ser felizes, "que o bom pode vencer".

Da mesma forma, Sílvia Coutinho também aconselha os pais a continuarem a contar histórias felizes aos filhos, pois estas dão segurança. "As histórias com final feliz dão a ideia de que tudo vai correr bem no final e isso é bom", assegura.

A psicóloga entende mesmo que estas histórias podem ajudar a falar da crise. "Os pais podem dizer que agora não podem comprar tudo, mas que no futuro tudo vai resolver-se e vão poder comprar brinquedos", exemplifica.

Importante também é que as crianças entendam o mundo à sua volta. "Os pais nunca devem ocultar a verdade. Mas é sempre mais fácil ir pelo lado negativo. Temos de pensar no aspecto positivo, explicando o lado mau", recomenda Bruno Gomes, aconselhando mesmo os pais a lerem contos de fadas para si próprios.

Para Gomes Pedro, "a criança deve saber o que é a realidade, mas claro que deve ter o seu refúgio de fantasia."


Publicado no Diário de Notícias em 06/06/2010

http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1586563

'Stress' faz disparar problemas de sono nas crianças e jovens

Número de casos que chegam aos pediatras está a aumentar. Um estudo alerta para as mudanças de comportamento e para a ansiedade que provoca nos mais novos

Luís, João e Matilde são irmãos e todos têm dificuldade em dormir. Uma situação cada vez mais frequente entre as crianças e jovens, alertam os especialistas. Na origem da falta de sono está o stress do dia-a-dia da maioria das famílias, que os mais novos também sentem.

Um estudo realizado nos Estados Unidos revela que as crianças dormem hoje menos uma hora do que há 30 anos. E que a falta de sono se reflecte na redução dos níveis de inteligência, num comportamento ansioso e até contribui para o aumento da obesidade.

"Há 15 anos não tinha tantos casos de crianças com problemas de sono", reconhece ao DN o director do Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Gomes Pedro. "Actualmente, o stress nas famílias é maior", justifica o clínico. E a maior proximidade de pais e pediatras durante as consultas também ajuda a detectar mais cedo os problemas.

O tempo necessário para dormir varia de criança para criança, mas oito horas é o tempo de sono recomendável pelos médicos. 60% das crianças e jovens ouvidas pelos autores do estudo norte-americano confessaram sentirem-se sonolentos durante o dia, porque dormiam menos de sete horas por noite. O que tem consequências no seu aproveitamento escolar ou nos níveis de ansiedade durante o dia.

No caso de Luís, 20 anos, e João, de 17 anos, a falta de uma noite descansada não se repercutiu nas notas. Já Matilde, de cinco anos, deixou de ir ao infantário durante cerca de dois meses devido aos problemas de sono que a faziam acordar tarde e cansada.

"De um momento para o outro deixou de dormir. Só conseguia descansar um pouco se fosse para a minha cama e há muito que tinha perdido esse hábito", recordou ao DN a mãe, Maria José Salgueiro. Além da falta de sono, os pesadelos estragavam o pouco que conseguia dormir e, para agravar, começou a urinar com frequência.

As causas não são claras, mas quando em Novembro a família ficou doente, com suspeitas de gripe A, Matilde, sendo a mais nova, "recebeu muitos miminhos". No regresso à normalidade, a criança sentiu muito esta separação. "Começou a não querer ir para o infantário, achava que eu não gostava tanto dela, que não a queria comigo", contou a mãe. O stress de se separar da mãe terá estado na origem da falta de sono. A criança passou também a estar muito ansiosa durante o dia.

Já no caso de Luís foi a preocupação com o irmão que lhe roubou o descanso. Como filho mais velho sempre levou muito a sério o seu papel de proteger o irmão João, que é surdo profundo. "Preocupava-se com tudo. Qualquer problema faz com que durma mal. Sempre foi assim", afirmou a mãe.

João é uma situação "mais normal" entre os jovens que dormem mal. Gosta de estar bem preparado na escola e perde o sono principalmente nas alturas dos testes. Mas, tal como Luís, nunca recorreu a um médico. Afinal bastava um pouco de calma para controlar a ansiedade e conseguir dormir.

Com Matilde, Maria José Salgueiro optou por ir ao pediatra e o segredo para que a filha voltasse a dormir descansada na cama exigiu muita calma e paciência. Tanto Gomes Pedro como o psicólogo Bruno Pereira Gomes recomendam que o primeiro passo seja recorrer ao pediatra.

"Só em situações extremas é que há mesmo a necessidade de recorrer a um psicólogo. A solução para que uma criança normalize o seu sono passa pela existência de rituais, como uma hora concreta de ir para a cama", referiu ao DN Bruno Pereira Gomes.

Gomes Pedro salienta que as crianças absorvem todos os problemas familiares. E que para resolver a situação "há que reorganizar a desorganização". Por isso, é importante que os pediatras sugiram aos pais estratégias para garantir que os filhos tenham uma noite descansada (ver caixa), o que pode passar por uma simples mudança de hábitos.

A opinião é partilhada por Bruno Pereira Gomes. "Muitos pais têm problemas em se impor e as crianças vão testando os limites." Depois, há um ponto essencial: "Hoje em dia as crianças têm uma vida muito sedentária. As crianças precisam de tempo para extravasar a energia", conclui.


Publicado no Diário de Notícias em 08/02/2010

http://dn.sapo.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=1489245&seccao=Sa%FAde

Crianças passam tempo de mais nas creches

Deco alerta que um terço fica mais de nove horas no jardim- -de-infância. Especialistas alertam para risco deste distanciamento

Ansiedade, stress e insegurança são alguns dos problemas que podem surgir nas crianças quando passam muito tempo na creche. E os dados de um estudo da Deco mostram que quase um terço está mais de nove horas nas creches. Os especialistas alertam para os riscos deste horário prolongado, mas lembram que mais importante é que o pouco tempo que os pais passam com os filhos seja um tempo de qualidade.

"A média que conheço é de dez a 12 horas por dia de estada na creche. Sete horas é o ideal", afirmou ao DN o psicólogo Bruno Pereira Gomes. O especialista considera que as creches são importantes para a socialização, mas também têm aspectos negativos: "As crianças estão muito tempo distantes dos pais. É crucial que quando estão com os filhos aproveitem ao máximo. Caso contrário, esta distância poderá resultar em crianças mais inseguras, instáveis emocionalmente, stressadas, ansiosas e menos respeitadoras."

Para Bruno Pereira Gomes "é difícil uma criança entender porque o pai não a vem buscar à creche há mesma hora que os outros". "Podem pensar que 'não gostam de mim'", referiu.

Já a pediatra Ana Serrão Neto diz que o melhor é mesmo não passar "tempo nenhum" na creche. "Até aos dois anos e meio/três é melhor ficar com familiares ou empregados de confiança", explicou ao DN. A clínica defende que a partir dessa idade e caso a criança não tenha contacto com outras, então, "por razões de socialização", a creche pode ser benéfica. "Não é desejável que sejam tantas horas, mas é a realidade", acrescentou.

Mesmo deixando os mais pequenos tantas horas no jardim-de- -infância, os pais gostavam que estes estabelecimentos fechassem as portas mais tarde e até que abrissem aos sábados. "Sei que é difícil ser pai e essa hipótese iria facilitar a vida, mas a solução não é essa. Há que pensar antes em ter melhores horários ou trabalhar mais perto de casa e reduzir o tempo gasto nos transportes públicos, por exemplo. Não podemos ter crianças a crescer sem pais", realça Bruno Pereira Gomes.

O estudo da Deco mostra também que 73% das crianças passam uma hora por dia a ver televisão nos jardins-de-infância. "Se o fazem é errado e antipedagógico. Um filme uma vez por semana é uma ideia aceitável", destacou o psicólogo.

Para Ana Serrão Neto este não é um problema, já que a televisão pode funcionar como "um estímulo visual" para os mais novos.


Publicado no Diário de Notícias em 26/02/2010


http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1505105



Já como e durmo sozinho:



Percursos na Autonomia da Criança

No léxico educativo, pode-se definir autonomia como o processo que permite à criança diminuir proporcionalmente a dependência do adulto e, em contrapartida, obter uma maior segurança em si própria, nas suas potencialidades, e na tomada de decisões por si mesma, através duma análise de diferentes aspectos ligados a essa escolha. Este será, no fundo, o objectivo de todos os intervenientes no processo educativo, o de permitir que a criança construa o seu conhecimento, e se torne responsável nos seus comportamentos e acções.

A referência ao termo no contexto específico do desenvolvimento assume diferentes significados, tendo em conta a idade da mesma, bem como outros factores, como são exemplo o género, a nacionalidade, a cultura, entre outros.

À medida que a criança adquire capacidades que lhe permitem um controlo motor e verbal mais eficaz, verifica-se, da sua parte, uma crescente disponibilidade para explorar, descobrir e comunicar com o mundo em seu redor, momento em que o termo autonomia ganha maior significado.


Desenvolvimento da autonomia
Piaget (em Desenvolvimento moral da criança) aborda o tema da autonomia moral da criança, dividindo-a em três fases:

Ü Primeiros 3 anos de vida: Após o nascer e, até o primeiro ano, ano e meio de vida, a criança vive numa fase caracterizada, entre diversos factores, por um grande egocentrismo, em que desconhece o conceito de certo e errado, de cumprir regras, e em que as suas principais conquistas verificam-se a nível relacional, especialmente nas relações de afecto junto das figuras de referência. As normas de conduta são impostas pelas necessidades básicas da criança. À medida que cresce, ela pode e começa a seguir regras que, são-no mais pelo hábito do que por uma consciência do certo e do errado.

Ü 3 aos 9 anos: Progressivamente, verifica-se o desenvolvimento do respeito pelas regras. A diferença entre o certo e o errado centra-se no cumprir ou não as normas impostas pelos adultos. Neste período, a capacidade da criança em “colocar-se no lugar do outro” é reduzida, o que a leva ao entendimento de que todas as outras seguem as mesmas regras. Este respeito encontra-se principalmente ligado a dois sentimentos, o amor e o medo. Esta respeita as regras pela necessidade de agradar ao adulto amado, e porque tem medo das consequências que derivam do seu não cumprimento.

Embora as regras sejam seguidas pelas crianças, estas ou não são capazes ou sentem dificuldades em compreender quais os critérios que levaram à sua elaboração.

- A partir dos 10 anos: A fase da autonomia, em que se procura uma legitimação das regras. O respeito pelas regras é realizado através de acordos mútuos. Elas agora são negociadas, acordadas, não podendo ser meramente impostas.


O papel dos adultos
O papel dos adultos, na construção da autonomia dos seus filhos, é fundamental e influencia, de modo marcante, o modo como a criança ultrapassa os diferentes desafios com que se depara à medida que cresce. Aos pais, cabe a função de promover um nível equilibrado de autonomia. Este equilíbrio centra-se entre dois pólos opostos:

Autonomia em excesso – em que os pais deixam a criança explorar por sua iniciativa, sem limites concretos e orientadores para com a sua acção. Além das dificuldades da criança em se socializar, em compreender o que pode ou não realizar, pode gerar-lhe sentimentos de ansiedade, insegurança, não se sentindo protegida e acompanhada pelos adultos de referência;

Autonomia em défice – Os pais ou adultos de referência adoptam comportamentos de sobreprotecção, em que a criança não é estimulada a experimentar, a explorar. Tal poderá contribuir para que se torne descrente das suas capacidades, e possua medo em arriscar e procurar novas experiências.

A pais e educadores, pede-se “uma tripla função”:
« Promover a autonomia, dando à criança a possibilidade de manter uma relação activa de exploração dos objectos como forma de construção do conhecimento;
« Manter disponibilidade para auxiliá-la nos momentos em que a tarefa se torna superior às suas capacidades actuais;
« Demonstrar, de modo coerente e firme, quais as regras e limites que se espera que cumpra.

Para uma criança, pode-se então definir o conceito de liberdade como o poder de escolha dentro dos limites que os adultos significativos lhe fornecem para explorar. Tal torna-se fundamental, na medida que tanto pais como educadores possuem como objectivo a preocupação em educar as crianças para a autonomia, estimulando-as a construírem os seus conhecimentos, de modo activo e participativo, bem como dotá-las de ferramentas para uma socialização eficaz.

A criança deve ser, tanto quanto possível, produtora do seu conhecimento, aprendendo a pensar. Deste modo, a pais e educadores cabe possibilitar-lhe a possibilidade de auto-reflectir, de manifestar os seus desejos, impulsos, de decidir, de resolver de forma autónoma os seus problemas, e sentir que, quando necessita, tem o apoio, a orientação e os limites dos adultos.

Deste modo: a criança autónoma não é aquela que faz tudo segundo os seus desejos e impulsos, sem atribuir importância ao seu redor. Mas antes, o sujeito autónomo é aquele que consegue ser e agir, segundo a sua vontade, mas de modo enquadrado e respeitante com as regras, ideias e valores do seu grupo social.


Ideias para fomentar a autonomia:
- Criar situações que promovam a autonomia, que obriguem a criança a escolher, a ponderar diferentes perspectivas, a experimentar o sucesso e o insucesso nas mesmas. Elas pedem orientação, e não uma autoridade máxima. Ao permitir a possibilidade de escolha e/ de actuação a uma criança, transmite-se que “confiamos em ti”, que sabemos que poderá ser bem sucedida e que, mesmo errando, poderá aprender e ultrapassar as dificuldades;

- Escutar. Ela possui um tempo próprio para organizar o seu pensamento, e convém que o adulto não antecipe as suas ideias, mas sim que lhe dê tempo para que as finalize;

- Promover um espaço aberto ao diálogo, à troca de ideias e ao entendimento;

- Permitir que a criança erre sem julgamentos, sem crítica;

- Evitar realizar as acções pela criança. A autonomia deve ser conquistada pela criança, e promovida pelo adulto;

- Adaptar as possibilidades de tomada de decisão de acordo com a idade e maturidade da criança;

- Mais do que os resultados finais, importa incentivar os pequenos passos na direcção correcta, pois a criança necessita de se sentir capaz, e só o sente quando obtém sucesso nas suas investidas.


Desafios desenvolvimentais das crianças (e dos pais): Alimentação e o Sono
Ao longo do processo de autonomização duma criança, existem desafios que colocam à prova pais e crianças, e que se tornam marcadores na sua relação. Estes são momentos privilegiados de relação, bem como de negociação, assentes num equilíbrio entre a vontade/necessidade da criança em se afirmar como um ser independente, e dos pais em educar a criança conforme os seus padrões sociais e educacionais. Não são, de longe, os únicos, mas a alimentação e o sono são comummente duas das tarefas desenvolvimetais que maiores desafios colocam a pais e filhos.

Não se procura, com este artigo fórmulas educativas. No entanto, existem alguns conceitos e conhecimentos que podem contribuir para ultrapassar essas dificuldades com menor tensão.

E, o primeiro passo passa pela aceitação de que, grande número das dificuldades que surgem, se verificam dado que a criança se encontra perante a aquisição duma nova competência. O seu desenvolvimento não é linear, não se regendo apenas pela aquisição de novas competências. Com grande frequência, a aquisição dessas leva a uma regressão noutras já adquiridas, o que pode suscitar nos pais sentimentos de frustração e, muitas vezes, a sensação de desespero.

No entanto, a aceitação de que os retrocessos verificados são um possível sinal de desenvolvimento dos seus filhos, pode levar a que os adultos se sintam menos ansiosos e frustrados e, consequentemente, que transmitam esses sentimentos mais positivos aos filhos, de incentivo perante os esforços dos filhos nessa procura de independência e autonomia.


Alimentação
Os momentos da alimentação são dos que maior angústia causam a pais e educadores, em relação aos quais se exige, o mais precocemente possível, altos níveis de autonomia por parte da criança. O alimentar-se sozinha está directamente ligado à autonomia da criança, e deve ser estimulado nesse sentido, desde os primeiros momentos.

No início de vida da criança, constata-se que a manifestação de vontade e prazer na alimentação, por parte do bebé, é algo natural. No entanto, ao longo do seu desenvolvimento, verificam-se períodos em que ela desinveste, o que vem criar problemas na tarefa alimentar. Apesar desta ser uma área, como tantas outras, em que deve existir um acompanhamento e um diálogo permanente com o pediatra da criança, existem algumas ideias a ter em conta, que poderão contribuir para prevenir e/ou atenuar as dificuldades.

Muitas das dificuldades ligadas à alimentação prendem-se com o facto das duas partes (criança / adultos) possuírem objectivos opostos. O desenvolvimento adquirido pela criança ao longo do fim do primeiro ano de vida, leva-a a querer com maior intensidade explorar essas capacidades. Mais do que alimentar-se, ela quer agarrar os talheres, a comida, negociar com os pais… Enfim, quer explorar todas as suas novas “ferramentas”. Este é um exemplo de como o investimento, por parte da criança, para desenvolver uma nova competência, leva a um retrocesso noutra, neste caso, na alimentação.

Não se pode esperar que a criança passe automaticamente do registo de ser alimentada para o de alimentar-se sozinha sem que, para isso erre. Para que tal suceda, de forma autónoma, tem primeiro que errar, fazer asneiras, sujar, entornar e deixar cair comida e talheres. Esta é uma etapa importantíssima para o objectivo final e, já por si, uma enorme conquista. Como tal, esta fase de experimentação deve ser acompanhada, compreendida e incentivada pelos adultos.

É importante que os pais valorizem, e incentivem, as novas capacidades dos seus filhos, como o agarrar, o procurar imitar os adultos, o comer sozinha e explorar diferentes texturas e consistências da comida... A criança precisa destas experiências, de sentir prazer na alimentação, como anteriormente ocorria. Após esta fase, ela encontrar-se-á preparada para aprender a ter uma alimentação de acordo com os padrões sociais em que se insere.

Quando, por insistência, a tarefa alimentar se torna desprovida de interesse para a criança, podemos estar a contribuir para que uma dificuldade potencialmente passageira, se adense e se fixe num padrão comportamental.

Também por volta desta fase de desenvolvimento, verifica-se uma mudança das suas necessidades alimentares. Tal carece duma correcta percepção por parte do adulto. Durante o primeiro ano de vida dum bebé, ele triplica de peso, o que leva a que o seu apetite seja muito grande. Entre o 1 e os 2 anos, verifica-se que o aumento de peso é substancialmente menor, apenas cerca de 20 %, existindo mesmo períodos em que se mantém. Tal é perfeitamente natural, e é desse modo que deve ser encarado. Por vezes, pais habituados às necessidades alimentares dum bebé, poderão sentir alguma ansiedade pela sua diminuição, e transmitir esse sentimento ao filho. Esse comportamento poderá remeter a maiores níveis de insistência, os quais poderão ser sentidos, por parte da criança, como agressivos, diminuindo o seu desejo natural de se alimentar.




Ideias-chave a considerar:
- Incentivar e estimular as tentativas de autonomia da criança. Neste caso específico, o comer sozinha. Aos poucos, e progressivamente, devemos ir incentivando as crianças a utilizar os talheres, como os “grandes fazem”;

- Deve-se evitar usar ameaças, recompensas e castigos ligados à alimentação. Até podem funcionar no momento mas, a criança pode sentir que possui uma “arma” que pode utilizar no futuro, o que só serve para prolongar as dificuldades. Funciona melhor atribuir liberdade à criança, permitir a exploração dos alimentos e promover que ela decida, dentro dos limites impostos pelos pais, como poderá resolver a situação;

- Ensinar a respeitar e valorizar o horário das refeições. Esse é o momento de alimentar-se, além dum momento importante de relação. Devemos procurar que seja tranquilo, apelar à liberdade e ao prazer de comer;

- Com frequência os pais preocupam-se com o facto dos seus filhos não se alimentarem convenientemente. O facto dela estar a crescer de acordo com os padrões para a sua idade, e a comunicação com o pediatra, ajudam os adultos a sentirem-se seguros quanto às suas capacidades em alimentar os filhos. Quando não se alimentam nos momentos adequados, importa resistir à tentação de o fazer posteriormente com alimentos do seu agrado;

- A criança, para ter fome, necessita de movimentar-se e ser activa. Quando passa muito tempo passiva, como é o exemplo de estar sentada a ver televisão, é natural que sinta menos fome. Ao invés, quando brinca, corre, joga à bola, gasta mais energias, e mais apetite terá;

- Como em tudo na actividade parental, ser um bom modelo e exemplo para os filhos. As crianças crescem desejando imitar e identificar-se com as suas figuras de referência, daí a importância de sermos bons modelos para seguirem.
Sono
Abordar a temática do sono é sempre um tema delicado, em especial porque não é uma questão consensual sendo, por consequência, sujeita a diferentes perspectivas e opiniões.

Existem vários factores que levam pais a querer dormir com os filhos, como são exemplo as seguintes situações:

- Fruto das necessidades laborais, verifica-se um elevado número de horas em que os pais estão privados dos seus filhos, resultando no desejo de passarem o maior tempo possível junto a eles. O dormir juntos proporciona maiores períodos de proximidade, além de poder oferecer mais segurança aos pais que, com frequência, sentem dificuldades em se afastar dos filhos;

- Pais divorciados poderão possuir maiores sentimentos de culpabilidade por se separarem dos seus filhos durante o dia e, assim, procurar compensar essa ausência durante a noite. Também pode ocorrer que estes adultos se sintam mais sozinhos e, assim, procurem uma maior proximidade com os filhos;

- O facto de crianças mais novas acordarem um número considerável de vezes durante a noite, leva a que seja facilitador atender às suas necessidades quando no mesmo espaço.

De modo geral, a nossa sociedade considera importante que a criança, mais cedo ou mais tarde, possua o seu espaço próprio, preservando a sua autonomia e intimidade, bem como a dos seus pais. Para os adultos, torna-se muitas vezes difícil fazer a escolha sobre o momento ideal para que o seu filho durma sozinho no seu quarto. Esta é uma decisão que deve ser, antes de mais, tomada em conjunto pelos pais, e planeada antecipadamente. A pesar nessa decisão deve contar a informação de que, quanto mais tarde ocorrer a mudança para o seu próprio quarto, mais difícil se tornará.

Brazelton, tendo em conta vários estudos que incidiram sobre a maturidade do sistema nervoso do bebé, defende que por volta dos 4/5 meses é a altura ideal para que os pais de debrucem sobre esta decisão.

O conseguir dormir sozinho é um dos objectivos a alcançar por parte duma criança, e é um passo importante no seu caminho para a autonomia. A importância desta conquista verifica-se facilmente no modo como crianças com 4/5 anos se valorizam dizendo “eu durmo sozinho”, em contradição com os que se remetem ao silêncio, com receio de serem descobertos pelos companheiros.

Para que uma criança “aprenda” a dormir sozinha, ela necessita ser capaz de fazer uso dos seus mecanismos para se reconfortar, e enfrentar uma noite afastada das suas figuras protectoras. Tal leva a que a criança aprenda padrões para o seu autoconforto quando acorda. Tal funciona como facilitador do processo de autonomia emocional, além de contribuir para o desenvolvimento do sentimento de segurança sem a presença física dos progenitores. Quanto mais a criança incluir os pais nos seus padrões de sono, mais dependente se tornará dos mesmos. Daí que seja natural que, ao contrário do esperado, quanto mais crescido for o filho, mais difícil tenderá a ser a mudança.

Esta importante conquista na autonomização, não é um processo linear e, com grande frequência, os pais deparam-se com retrocessos, o que os pode levar a questionar as crianças, bem como as suas próprias capacidades educativas. Como referido anteriormente, a aquisição de novas competências pode causar retrocessos noutras já adquiridas e, nesse aspecto, o sono é facilmente influenciável. Deste modo, mais uma vez, é com calma e consciência de que é “um passo em frente” que os pais devem encarar estas novas dificuldades. Apontam-se dois exemplos de avanços que podem causar retrocessos no sono:

Ao adquirir o desenvolvimento motor que lhe permite levantar-se, agarrar-se ao berço, é natural que a criança teste essas capacidades na hora de deitar. Quando esse desenvolvimento se cimentar, os seus padrões de sono tendem a normalizar-se. No sentido oposto, quando os adultos encaram com demasiada ansiedade esses retrocessos, ao invés de valorizarem o avanço alcançado, poderão inconscientemente contribuir para que as crianças se fixem neles.

Outro exemplo recorrente verifica-se por volta dos três anos. Neste período, verifica-se um avolumar dos medos manifestados pela criança, como são exemplo o medo do escuro, dos fantasmas e ladrões, que surgem com maior intensidade nesta idade, em especial no momento de deitar. Mais do que um retrocesso na capacidade da criança dormir sozinha, estes medos são sinais de uma maior maturidade em diversas áreas, como a da imaginação, da criatividade, do jogo simbólico, e duma maior consciência dos seus pensamentos agressivos, que se tornam mais ricos neste período.

Este desenvolvimento, importantíssimo no modo como a criança se socializa e incorpora os diferentes papéis sociais, resulta frequentemente em retrocessos na capacidade da criança sentir-se segura, no seu quarto, longe dos pais.

Mais uma vez, o primeiro passo para ultrapassar estes retrocessos passa pela sua aceitação enquanto integrantes e consequência dum processo evolutivo positivo da criança. Estas dificuldades são, no fundo, bons sinais e, quando os pais assim os aceitam, contribuem para uma diminuição da sua ansiedade e frustração, evitando que estas sejam passadas aos filhos.

Para finalizar, deixam-se algumas ideias úteis para ajudar a criança a dormir sozinha, e a vencer o medo do escuro:

- Procure transformar o momento de deitar numa ocasião de prazer e de relaxamento. Fale com a criança, conte-lhe histórias ao adormecer;

- A existência de rituais ajudam a criança a organizar-se e a orientar-se. Uma hora certa para deitar, e a criação dum ritual de preparação para este momento, como o beber leite, vestir o pijama ou lavar os dentes podem ser facilitadores. Importa que a criança interiorize que um determinado acto precede o momento de deitar, sem retorno ou negociação possível;

- Reconheça e legitime o medo da criança. Tente compreendê-lo e, em conjunto, explorar a causa dos seus medos, bem como formas de os ultrapassar;

- Mostre cumplicidade com os seus filhos, falando-lhes dos seus medos quando era criança, e até mesmo de alguns que sente em adulto (tendo em conta a adequação dos conteúdos à idade da criança);

- Deixar a porta aberta do quarto pode ser um bom auxílio;

- A existência duma luz de presença é um "amigo" maravilhoso. Se a idade da criança o permitir, ter junto a si uma lanterna que pode acender quando sentir medo. Este medo pode ajudar a criança a sentir que possui uma "arma" para se proteger;

- A possibilidade da criança ter na sua cama um boneco ou brinquedo que goste muito pode contribuir para que se sinta mais segura e confiante;

- O medo do escuro não se enfrenta no mundo do concreto, por isso torna-se desnecessário dizer-lhe que papões não existem. Este é um jogo que se joga ao nível da imaginação, e por isso os pais terão que participar a esse nível. Ajude a criança a procurar os monstros que julga escondidos no armário, assuste os fantasmas com uma lanterna, conte-lhe histórias em que os heróis venceram os monstros, use a imaginação e a fantasia...

“Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros
fizeram de mim”
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)





Bibliografia / Leituras recomendadas
Brazelton, T. Berry (1995), O Grande Livro da Criança, Editorial Presença, Lisboa.
Brazelton, T. Berry (2004), A criança e o sono, Editorial Presença, Lisboa.
Piaget, Jean, O Juízo moral na criança (1994), Editora Summus, São Paulo.
Sprinthall & Sprinthall, Psicologia Educacional (2000), Mc Graw-Hill, Lisboa.